
Doía-me a cabeça, eu tinha enjôos, e pelos membros sentia correr a febre de um resfriado.
- Esta carta veio pelo correio; o carteiro foi quem trouxe - disse Matriona.
Uma carta? De quem?
- Não posso lhe dizer; veja, talvez aí dentro diga quem é...
Uma carta? De quem?
- Não posso lhe dizer; veja, talvez aí dentro diga quem é...
Rasguei o sobrescrito; a carta era dela, e dizia assim:
"Oh, perdoe, perdoe!" - me escrevia Nastenka. - "De joelhos lhe peço que não fique sentido comigo. Eu o enganei como enganei a mim mesma. Foi um sonho, uma ilusão... Ao pensar em você, sofro o indizível. Perdoe-me, oh, perdoe-me!...
Não me acuse, pois o que sentia por você é o que continuo a sentir; eu lhe disse que o amaria, e continuo a amá-lo, eu lhe juro: e sinto por você um pouco mais do que amor. Deus meu, se eu pudesse amar os dois ao mesmo tempo! Oh, se você e ele fossem um só homem!
Deus me vê e sabe que eu estaria disposta a tudo por você. Eu sei que você vai sofrer agora e que está triste. Eu o ofendi e lhe causei sofrimento, mas você sabe... Quando se ama, não dura muito o ressentimento. E você me ama!...
Eu lhe agradeço muito. Sim! Eu lhe agradeço muito desse amor. Porque essa recordação me acompanhará durante toda a vida, como um doce sonho que a gente não consegue esquecer, ao despertar. Não, eu nunca poderei esquecer como você me mostrou tão fraternalmente sua alma e com sua bondade aceitou como seu o meu coração ferido e dilacerado, para cuidá-lo terna e amorosamente e devolver-lhe a saúde... Se você me perdoa, sua recordação se transfigurará com o sentimento de eterna gratidão. E esta recordação será sagrada para mim e nunca o esquecerei, pois tenho um coração leal. Ontem, ele não fez outra coisa senão voltar para aquele que já era seu dono.
Havemos de ver-nos ainda, você virá visitar-nos, não nos abandonará, será eternamente nosso amigo e meu irmão... E quando vier ver-nos me dará sua mão... Não é verdade? Você não terá dificuldades em a estender para o perdão, não é mesmo? Seu amor por mim será o mesmo? Não é a verdade?
Sim; goste de mim, não me abandone, pois agora o amo tanto porque quero ser digna do seu amor, porque quero merecê-lo... meu querido amigo! Na semana que vem nos casaremos. Ele voltou cheio de amor por mim e diz que nunca me esqueceu... Não se zangue porque lhe falo dele. Mas eu quero ir visitá-lo em sua companhia e você também lhe terá afeição. Não é verdade?
Perdoe-me, pois, e não me esqueça nem deixe de querer bem à sua
Nastenka."
Durante longo tempo li e reli aquela carta e tornei a ler. As lágrimas afluíram a meus olhos; até que, finalmente, ela me caiu das mãos e nestas ocultei o rosto...
- Bem; então o senhor não está vendo? - exclamou depois de algum tempo a voz da Matriona.
- O que, velha?
- Pois eu tirei as teias de aranha que havia em todo o quarto, de modo que o senhor já pode casar, se quiser, ou trazer convidados, se lhe agradar, porque pela minha parte...
Eu a olhei de frente. É uma mulher forte, jovem ainda, mas não sei por que, tive a impressão de vê-la de súbito com os olhos apagados, profundas rugas na testa, velha e cheia de achaques diante de mim... Não sei por que me pareceu de súbito que meu quarto se tinha tornado tão velho quanto ela. Vi empalidecerem as cores das paredes, divisei ainda mais teias de aranha nos cantos do que havia antes. Não sei por que, ao olhar para fora pela janela me pareceu que a casa fronteira também tinha envelhecido e se transformara em uma ruína descolorida, que o estuque das pilastras estava cheio de gretas, que as cornijas estavam enegrecidas de manchas, rachadas, e sujas as pardas paredes.
Por acaso tivera culpa aquele raio de sol que de súbito abriu espaço entre as nuvens, para em seguida voltar a ocultar-se por trás de uma delas, ainda mais escura, anunciadora de chuva, de forma que tudo ficou ainda mais lôbrego, mais sombrio. Ou seria por que meus olhos haviam visto meu futuro e contemplado nele alguma coisa árida e triste, algo semelhante a mim mesmo, como sou agora, ao que serei dentro de quinze anos, no mesmo quarto, igualmente sozinho, com a mesma Matriona, que em todo esse tempo não terá adquirido mais inteligência...
Mas não perdoar a ofensa, Nastenka; turvar sua clara e pura felicidade com nuvenzinhas obscuras; fazer-lhe censuras, para que seu coração sofra e se atormente, e palpite dolorosamente, quando não devo fazer outras coisa senão exaltar, jubiloso, ou tocar uma só folhinha das ternas flores que você, ao casar com ele, porá nos negros cachos... Oh, não, Nastenka; isso eu nunca farei, nunca! Que a sua vida seja ditosa e tão clara e gostosa quanto seu doce sorriso, e bendita seja você pelo momento de ventura e de felicidade que deu a outro coração solitário e agradecido!
Deus meu! Um momento total de felicidade? Sim! E isto não é bastante para inundar uma vida?... "
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